Cuidado! Frágil!

Publicado em: 15/09/2020


Texto de Rafael Giguer

Ser nomeado para um concurso público é o sonho de consumo de muita gente. Quando falamos de pessoas com deficiência, isso se torna mais verdade ainda, pois sabemos como é difícil transpor as barreiras do preconceito em uma entrevista de emprego, competindo com tantas outras pessoas sem deficiência. Foi o meu caso, que embora graduado em Engenharia de Materiais, jamais fui selecionado em uma entrevista de emprego na iniciativa privada. Embora tivesse um ótimo currículo, fosse bem comunicativo, tudo que o entrevistador enxergava era minha deficiência visual, sendo sempre deixado de lado para que alguém sem deficiência assumisse a vaga. Foi assim, entendendo que não seria contratado, que passei a estudar para concursos públicos. Eu sabia que teria que me dedicar muito e assim não ficaria com o destino na mão de um entrevistador preconceituoso. No entanto, por mais que estudasse, havia sempre outro risco: a prova poderia não ser suficientemente acessível ou o edital poderia apresentar uma armadilha para que eu não fosse nomeado. Posso dizer, tranquilamente, que um dos dias mais importantes para mim, que mudou completamente a minha vida, foi quando fui nomeado para assumir meu cargo público. Por esse motivo, peço que prestem atenção e deem a devida importância para o que eu tenho para dizer:
Há algum tempo, cerca de 2.800 pessoas com deficiência foram chamadas para trabalhar na CAIXA e sentiram, em suas vidas, a mesma transformação que eu tive ao ser nomeado. Essa mudança quase não foi possível, pois havia um dispositivo discriminatório e perverso no edital, que impediria suas nomeações.
E hoje venho aqui contar pra vocês o que aconteceu para essas milhares de vidas se transformarem. Para entender isso, não devemos olhar para nenhum político ou presidente. Precisamos, na verdade, é conhecer a história de dona Maria do Socorro (nome verdadeiro).
Mais especificamente, é preciso conhecer a históriado quarto dos seis filhos de Maria do Socorro: o “Fernandinho”. Aliás, o simples fato de o Fernando ter esse apelido carinhoso já é uma demonstração da resistência, esperança e coragem de sua mãe. Quando Fernando nasceu, o primeiro diagnóstico que Maria do Socorro recebeu de um médico foi o seguinte: “não se apegue a seu filho, pois ele não vai durar até os dez anos de idade”. Fernandinho tinha nascido com osteogenese imperfecta, vulgarmente conhecida como “doença dos ossos de vidro”. Para sempre seria muito frágil, necessitando de atendimento médico e cuidados especiais, e de acordo com esse médico, não valeria a pena se apegar a essa criança que provavelmente não resistiria por muito tempo.
Mas Maria do Socorro era uma nordestina arretada… antes de tudo era uma forte e dura, não pela origem, mas por ser mãe e transbordar de amor. Ainda que sua família fosse tão humilde a ponto de a palavra fome, por algumas vezes, não ser só uma palavra em seu lar. Ainda que tenha sido desencorajada pelo médico. Ainda que carregasse todas as responsabilidades para com os outros cinco filhos e o lar. Ainda assim, foi atrás da criação de seu Fernandinho da melhor forma possível.
Foi de médico em médico, de diagnóstico em diagnóstico. Certa vez, chegou a permitir que um médico tirasse raio x de todos os ossos de seu filho, para depois descobrir que tais exaustivos e perigosos exames serviram apenas para satisfazer a curiosidade acadêmica do médico de plantão, que ao ter todas as chapas em mãos foi-se embora sem nenhum retorno para auxílio real ao Fernandinho.
Mas Maria do Socorro era uma forte, era dura! E nessas andanças encontrou o médico certo no posto de saúde certo. Lá recebia todo o atendimento necessário de forma humana e inclusive, quando chegava com Fernandinho, era prioridade um, passando na frente de todos na fila. Era sempre assim, avisava que tinha chegado com Fernandinho e a atendente do doutor imediatamente colocava os dois para serem atendidos em seguida. Foi assim sempre… exceto naquele dia de setembro de 1975, que faço questão de contar para vocês:
Maria do Socorro, como de praxe, avisou a conhecida atendente que já estava lá, conforme agendado pelo médico. Mas ela não foi chamada imediatamente. Sentou-se e viu todos os outros pacientes serem atendidos antes dela. “Avisa o doutor que Sou a Maria do Socorro do Fernandinho”, ao que a atendente dizia que o doutor já sabia, mas que aguardasse a sua vez.
E assim foi a tarde toda, vendo passar todos os outros pacientes, já impaciente sem entender o que havia. Quando finalmente o último dos pacientes foi atendido e não restava mais nenhum para ser chamado, o conhecido doutor anuncia “Maria do Socorro e Fernandinho, podem passar”.
Maria do Socorro entra cansada e frustrada pela espera, mas ao passar pela porta do consultório transforma rapidamente sua frustração em curiosidade: sobre a mesa do doutor havia três taças e o médico, então, enche duas taças com espumante e uma com guaraná (esta para o Fernandinho).
“Dona Maria do Socorro, sabe que dia é hoje?”, pergunta o doutor.
“Hoje é 15 de setembro de 1975 e agendei essa consulta de propósito para comemorarmos. Sei que hoje Fernandinho completa 10 anos de idade, e ao contrário do que tentaram te convencer no passado, hoje seu querido Fernando está aqui contigo”.
Maria do Socorro, com sua força e amor, fez o oposto do que aquele médico anos antes disse para fazer. Ao invés de não se apegar ao filho, nutriu ele com toda sorte de cuidados e ensinou por meio do exemplo que, apesar da fragilidade das circunstâncias, é possível ser extremamente forte.
Fernando não deixou de ter ossos de vidro, mas aprendeu muito com a garra de sua mãe. Não podia frequentar as aulas de educação física nem jogar bola, mas aos três anos de idade já sabia ler. Era mais miúdo e frágil que seus colegas e precisava de um colega de apoio, mas aos 14 anos de idade já era aprendiz concursado no Banco do Nordeste e responsável por custear o plano de saúde de toda sua família. Fez questão de entregar para sua mãe o seu primeiro salário, que não era pouco, inaugurando um costume que perdura até hoje. Fernando, mesmo com seu corpo frágil, é um pilar de sustentação para toda sua família.
Mas Fernando não deixa sua marca apenas em sua família. Hoje Fernando pode ser ainda frágil, ter inúmeros ossos quebrados no currículo e outras inúmeras cirurgias, mas como Auditor-Fiscal do Trabalho é o principal responsável, junto com a equipe de auditores do projeto, pela efetivação da lei de cotas no estado de Pernambuco. Sua dedicação ao estudo dos direitos humanos e fiscalização de concursos públicos é que foi responsável, por meio de seus relatórios circunstanciados, pela identificação daquela irregularidade no edital da CAIXA, que resultou na nomeação e na transformação das mais de 2.800 histórias de pessoas com deficiência ao se tornarem servidores da instituição. Além de todas as inclusões que carrega com leveza nas costas, também foi o principal responsável por impedir que a Lei Brasileira de Inclusão fosse aprovada com uma alteração que tornaria impossível penalizar alguém por discriminação em razão de deficiência no Brasil.
Minha graduação em Engenharia de Materiais não foi suficiente para eu conseguir um emprego, mas lá eu aprendi que a dureza é a propriedade que os materiais têm em riscar e deixar a sua marca em outras superfícies. Já a fragilidade é uma propriedade oposta à dureza. O que significa que quanto mais duro e capaz de deixar sua marca um material é, ao mesmo tempo mais frágil ele se torna, tendo como exemplo máximo o diamante: extremamente duro e ao mesmo tempo extremamente frágil do ponto de vista da ciência dos materiais.
Desconfio que a fragilidade do corpo do meu colega e amigo Fernando Sampaio esteja mais associada a essa lei da ciência dos materiais do que a alguma doença com nome exótico. Foi Dona Maria do Socorro que ensinou seu quarto filho a transformar fragilidade em dureza e assim, deixar a sua marca em incontáveis histórias mundo afora.
Agora vocês sabem! Sabem porque a CAIXA contratou mais de 2.800 trabalhadores com deficiência. Sabem porque no Brasil é possível penalizar alguém por discriminação em razão de deficiência e capacitismo. Sabem porque em Pernambuco as pessoas com deficiência tem uma chance de trabalhar. Sabem, porque agora conhecem a história da Dona Maria do Socorro e seu quarto filho.
E tenho o privilégio de publicar esse texto hoje, 15 de setembro de 2020. Então convido todo mundo a pegar uma taça, encher de espumante ou guaraná e brindar comigo. Aquele mesmo Fernandinho, a quem nem sua mãe deveria se apegar, já que não duraria até os 10 anos, hoje completa 55 anos e nos brinda não com sua fragilidade, mas com sua dureza e capacidade de deixar a marca em incontáveis vidas e histórias!
Feliz aniversário, colega Fernando! Você não é de vidro, você é de diamante!

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