Compliance e acessibilidade: cultura de integridade na diversidade – por César Romão e Denise Guedes
Em julho deste ano comemoramos o 29º aniversário da Lei de Cotas (art. 93, Lei nº 8.213/1991) e 5º aniversário da Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº13.146/2015), as quais determinam a adoção de medidas efetivas que contemplem a acessibilidade e os direitos da pessoa com deficiência no ambiente de trabalho, em igualdade de condições e oportunidades, ou seja, sem discriminação na admissão, remuneração, permanência e ascensão profissional.
Mesmo diante de tais normas, em 06 de julho do corrente ano, entrou em vigor a Lei nº 14.020/2020, instituindo o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda que determina medidas complementares para enfrentamento do estado de calamidade pública, o qual, em seu art. 17, inc. V, veda a dispensa sem justa causa da pessoa com deficiência visando impedir condutas discriminatórias.
Em 21 de setembro, celebramos o dia nacional de luta da pessoa com deficiência e, em 11 de outubro, o dia nacional da pessoa com deficiência física. Muitas outras datas comemorativas estão no calendário dos movimentos em prol da inclusão, contudo, as organizações devem promover muito mais que celebrações e palestras para, de fato, implantar a cultura inclusiva e se posicionar no sentido da integridade.
É notório o crescimento do interesse das organizações pelos programas de Compliance e de Diversidade e Inclusão (D&I), porém, estes nem sempre estão alinhados com as regras de acessibilidade, perpetuando a presença de barreiras (arquitetônica, comunicacional, atitudinal etc.) para que as pessoas com deficiência sejam efetivamente incluídas no ambiente organizacional como as demais.
Por razões culturais, a barreira atitudinal é o maior obstáculo para promoção da equidade (respeito à igualdade material de direitos), por isso, busca-se aplicar as boas práticas de governança, respaldadas por um programa de Compliance, na condução da transformação da cultura organizacional, envolvendo a alta liderança, articulando ações entre as diversas áreas da empresa, compartilhando tarefas e responsabilidades decorrentes dos valores da inclusão, por vezes, deixadas exclusivamente a cargo da área de Recursos Humanos.
Os projetos de diversidade e inclusão visam incluir os grupos minoritários e vulneráveis no ambiente organizacional, em atendimento aos postulados da responsabilidade social e de respeito aos direitos humanos, e como estratégia para fomentar a inovação, a fidelização do público-alvo, a atração, engajamento e retenção de talentos, a melhoraria da saúde organizacional, e a atração de investidores do segmento ESG, alinhando-se aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da ONU (ODS nº 8 – Trabalho Decente e Crescimento Econômico).
A construção de um ambiente organizacional inclusivo passa pelo combate ao “jeitão” machista, racista, homofóbico, capacitista e segregador.
Um bom programa de Compliance, por sua vez, é responsável pela implementação e o monitoramento de mecanismos que buscam prevenir, detectar e remediar desvios de conduta, como, por exemplo, os atos de corrupção e fraudes corporativas, ou seja, afastar o maléfico “jeitinho” na condução dos negócios para garantir a longevidade e a boa reputação da organização.
“Jeitinho” e “jeitão” são comportamentos instintivos, atávicos, que realizamos de forma consciente ou inconsciente para manutenção de privilégios sociais e poder econômico. Buscamos nossos semelhantes e segregamos os diferentes para ter maior previsibilidade e conforto nas relações interpessoais, em que pese não haver nada mais inovador ou disruptivo que interagir, de forma construtiva, com o outro diferente.
Se a cultura organizacional é o “jeito” de fazer as coisas, a cultura de integridade pode ser entendida como o jeito ético de fazê-las, perseguindo valores como a honestidade, moralidade, conformidade, sustentabilidade e equidade na tomada de decisões e nas relações com stakeholders (investidores, colaboradores, consumidores, fornecedores, órgãos reguladores etc.).
O compromisso com a equidade e a inclusão compreende a adoção de medidas efetivas que contemplem as diferentes dimensões da acessibilidade (arquitetônica, comunicacional, atitudinal etc.) e os direitos da pessoa com deficiência no ambiente de trabalho.
Ao abranger a conformidade inclusiva, o Programa de Compliance considera as normas de acessibilidade e as políticas públicas para a promoção da igualdade, da diversidade e da não-discriminação no ambiente laboral na avaliação de riscos; adequa o código de condutas e políticas internas em prol da diversidade e inclusão; orienta o canal de denúncias, promovendo investigações internas adequadas relativas ao assédio, discriminação e demais comportamentos indesejados; desenvolve treinamentos e comunicação fomentando a cultura de integridade na diversidade; e incentiva o desenvolvimento de lideranças inclusivas.
Portanto, o trabalho em ambientes acessíveis e inclusivos, em igualdade de condições e oportunidades, ou seja, sem discriminação, deve ser reconhecido para todos, independentemente de suas características pessoais, afinal, o que deve imperar são as capacidades, competências, funcionalidades e a contribuição para os objetivos perseguidos pela organização.
Nesse contexto, a garantia da acessibilidade – prevista em nossa Constituição, na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, ratificada pelo Brasil com status de emenda constitucional e na Lei Brasileira de Inclusão – e a observância das demais leis que consolidam as políticas públicas de ações afirmativas para as pessoas com deficiência no âmbito do trabalho – a Lei de Cotas (art. 93, Lei nº 8.213/1991), a Lei do Menor Aprendiz (Lei nº 10.097/2000) e a Lei de Estágio (Lei nº 11.788/2008) –, devem ser interpretadas apenas como ponto de partida para a conformidade com os fins determinados pelo texto constitucional e instrumentalizados por meio de políticas públicas, como a busca pela igualdade de todos perante a lei.
Ao optar pela cultura integridade não há espaço para “jeitinho ou jeitão” e cumprir as leis é o mínimo razoável. A cota para pessoas com deficiência é o piso e não o teto para a promoção da igualdade de condições e oportunidades de trabalho, e para que a organização usufrua dos benefícios da diversidade humana.
César Eduardo Lavoura Romão: advogado sócio do escritório Aversa Araújo Advogados, responsável pela área de Inclusion Compliance. Mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP. Professor na Faculdade de Direito da FMU. Professor na Pós-Graduação de Governança Corporativa e Compliance da FMU. Instrutor do IN Movimento Inclusivo. Membro da Comissão de Direitos das Pessoas com Deficiência da OAB/SP. Membro do Comitê Jurídico da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down.
Denise De Stefano S. Guedes: advogada associada do escritório Aversa Araújo Advogados. Extensão em Gestão de Riscos em Projetos pelo BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento. Certificação EXIN-PDPE. Pós-graduada em gestão de riscos, compliance e LGPD pela FIA. Pós-graduanda em Direito Digital e Proteção de Dados pela ESA/OAB.