Carta a uma escravagista, por Rafael Giguer

Queria que fosse mais fácil. Queria que você fosse visível e fisicamente monstruosa, horrenda e abertamente cruel.
Que fosse mais fácil chegar e me horrorizar com tuas maldades. Porra, você reduziu um ser humano à condição de coisa por mais de 40 anos para teu bel-prazer. Para tua tranquilidade em ter a casa limpa sempre, teu gozo de se sentir caridosa e tua satisfação em preencher o vazio de nunca poder ter tido uma filha. E como consequência do teu prazer egoísta, você proibiu durante uma vida inteira que ela pudesse se relacionar com sua própria família e seus vizinhos, ter educação, lazer ou mesmo cuidados de saúde. Por tua conta, ela nem soube que o próprio pai havia morrido há quase um ano, já que ninguém além da tua família podia chegar perto dela.
Nunca pagou salário, nunca deu férias… até porque, o que ela faria com férias se não tinha nem uma vida para desfrutar fora do trabalho? Foi isso que você tirou: a possiblidade de ela ter uma vida própria apartada dos teus desejos e necessidades para desfrutar.
Construiu um mundo de mentiras para ela acreditar que o mundo era um monstro e você, uma salvadora. Ensinou a ela que, apesar de todas as agressões, abusos e rotina de trabalho incessante, você era um anjo, pois a protegia de um mundo de atropeladores e estupradores… a protegia, inclusive, dos vizinhos preocupados e da família que buscava um contato. Fez ela realmente acreditar que o calabouço no qual vivia era uma dádiva, mas ela claramente não era feliz nesse “paraíso”.
Caramba, que paraíso é esse? É impossível conversar com ela sem vê-la chorando. Na verdade, é impossível conversar com ela. Está tão assustada em interagir com alguém de fora que só repete aquelas frases que tenho certeza que foi você que ensinou.
O que você falou para ela agir daquele jeito? Acho mesmo que você ensinou que, se algum estranho perguntasse qualquer coisa, ela teria que repetir aquele monólogo decorado. Do contrário, os malvados de fora a levariam para a rua para os estupradores e atropeladores, né? Tenho quase certeza de que foi isso que você ensinou. Caramba, não disse que era da fiscalização, não disse porque razão estava lá… só perguntei se poderia usar o banheiro e ela já começou a repetir aquele monólogo pronto e dissociado das minhas perguntas: “eu gosto dela, não quero sair daqui, eu como com ela na mesa, eu gosto dela”.
Tenho quase certeza de que você fez ela, apavorada, decorar essas frases para não ser levada para o mundo monstruoso que você pintou.
Relatando isso tudo chega a ser fácil ter quase certeza absoluta de que você é um monstro…
O problema é que tudo o que tenho é só uma quase certeza, e esse quase me corrói por dentro.
Me corrói porque o mundo real é ainda mais perverso pois não é dividido entre monstros e heróis.
Me corrói porque estou aqui para escutar também a tua versão dos fatos.
Por que você precisava ser uma senhorinha idosa tão querida, gentil e amorosa na minha frente? Por que as tuas histórias precisavam ser tão convincentes até para mim?
Você diz que ela é como uma filha, que a salvou de uma vida de miséria e agressões da família original. Jura que ela não trabalha, que no máximo passa um pano e varre para se distrair, que leva ela no médico, que foram na praia, que ela dorme perto de ti e que não saberia viver sem ela. Conta que a protege de tudo e de todos, impedindo que pessoas más se aproximem dela pois querem se aproveitar da sua condição.
E que droga, sentado embaixo daquela árvore, tomando Coca-cola e te ouvindo, parece tudo tão plausível. Ainda mais que ela, sempre chorosa, diz que gosta de ficar aí…
Um lado meu quer tanto acreditar em ti, constatar que é só um lar amoroso, virar as costas e seguir para o resto das minhas atividades da semana.
Porque, de outro modo, constatar o trabalho análogo ao escravo significa retirar daí alguém que não pediu para sair. Retirar alguém que realmente acredita que precisa, com todas as forças, continuar submetida a essa vida, convencida há anos de que esse é o melhor lugar onde ela pode estar.
Porque determinar sua retirada significa romper o único vínculo dela dos últimos 40 anos e sujeitá-la ao medo da interação com estranhos. Significa admitir para mim mesmo que, de verdade, não sei se uma vida em um abrigo para pessoas com deficiência pode ser uma alternativa mais terna que esse calabouço ao qual ela foi ensinada a ver como um paraíso.
De verdade, eu preciso respirar
E espero um pouco de verdade na conversa com os vizinhos.
Todos os vizinhos contam horrorizados e indignados sobre as agressões verbais e físicas. Das rotinas incessantes de trabalho degradante, com pouca roupa, no inverno. Não chamam de filha da dona da casa, não chamam de empregada doméstica, não chamam de pessoa da casa. Os vizinhos têm uma única palavra para designar ela: Escrava.
Volto para a tua casa mas não bebo mais Coca-cola nem quero ir para a sombra da árvore.
A família que você dizia não saber o paradeiro e acreditava estar morta começa a aparecer. Aparece não só viva, mas relatando que tentava aproximação com ela e você proibia o contato.
E aos poucos, a história que você contava segue convincente, admito, mas começa a apresentar falhas ao confrontá-la com informações que encontrei em outros lugares que não a tua boca.
Eu queria que fosse esse lar amoroso que você me relata e me confunde… Mas então por que, meses atrás, tentou esconder ela informando que na sua casa morava apenas você e seu marido? Por que quando, naquela visita, os técnicos a viram e você afirmou que se tratava apenas de uma pessoa que ia trabalhar na sua casa de vez em quando, se hoje jura que ela é da família e que a trata como filha?
Por que então chama teu filho de “filho único” se nos diz que ela é filha também? Por que teu filho teve todo o estudo enquanto que ela não saiu de casa?
Por que mente que espontaneamente levou ela para atendimento psicológico, quando sei que esse atendimento decorreu de uma exigência que fiz à assistência social do município meses atrás, sem você saber?
Por que nesses quarenta anos nunca levou ela para estudar ou para um acompanhamento continuado de terapia ou assistência?
Por que o medicamento que ela toma é o receitado para você?
Por que os pertences dela estão todos naquele quarto precário anexo à casa e não no quartinho arrumado ao lado do seu, que você nos convenceu ser o dela?
Por que ela me disse que ainda não limpou o banheiro, se você me jura que ela nunca limpa os banheiros da casa?
Por que ela tem as mãos tão calejadas se você jura que ela não é responsável por nenhuma atividade de trabalho na casa?
Por que ela me diz que bate na cara das bonecas por não se comportarem ou responderem o que é perguntado?
Por que todos os vizinhos com quem converso relatam as mesmas agressões verbais e físicas?
E por que você, na minha frente, segue aparentando ser tão bondosa, cuidadosa e carinhosa, me confundindo?
Me agarro com força nas falhas de tuas histórias para me sentir mais convicto. Por que você está mentindo para nós, se julga ser tão benevolente? Por favor, admita que você é um monstro. Preciso disso para fazer o que já sei que devo fazer… Mas sei que não vai admitir. Não vai admitir porque você realmente acredita ter feito o melhor.
E isso me corrói.
Caramba, como um mantra preciso repetir para mim:
40 anos sem poder interagir com outras pessoas; sem poder sair de casa; trabalhando sem folga; sem férias; sem salário; sofrendo agressões físicas; agressões verbais; sofrendo terrorismo psicológico; não sendo estimulada a se desenvolver; apartada da rede de proteção social e de saúde. E você, odiada pelos vizinhos em decorrência do que eles testemunham. Ocultando provas de nós. Ocultando ela de ter uma vida própria.
Mas ainda me corrói.
Você diz que isso tudo é amor e proteção.
Ela genuinamente sofre dizendo que não quer sair da tua casa… e você, com sua história de ternura e proteção, na qual quero tanto acreditar e que em parte sei que você mesmo acredita…
Respiro…
Reflito…
Respiro…
Reflito…
Olha só. Pensei e me dei conta.
Não viemos aqui para fiscalizar o teu coração, mas os teus atos e as consequências deles.
Do ponto de vista trabalhista a caracterização das irregularidades está provada. Você sabe que as coisas não estão como deveriam ser e por isso mente. Não podemos permitir que essa relação siga deste jeito. Direto e objetivo assim.
Ela pode até dizer que não quer sair daí, ainda mais com todo terrorismo psicológico que você colocou nela. Mas você sabe, no fundo você sabe: ela claramente está sofrendo e tendo uma vida indigna sem relações outras que não as que você controla.
E ela merece ter o direito de, mesmo depois de tanto tempo, conhecer o mundo, conhecer novas relações e vínculos e só assim, com horizontes ampliados, ter condição de sentir o que prefere.
Veja bem, romper um vínculo é sempre pesado, mas pode permitir a construção de novos laços, mais sadios e felizes.
Poxa, você vê como ela chora constantemente. Essa vida já deu. É indigna e nunca pertenceu a ela.
Você diz que tem afeto por ela, mas você sabe, já é bem idosa. Já pensou o que será dela depois que você não estiver mais aqui? O afeto verdadeiro envolve muito mais do que o prazer, a satisfação ou a tranquilidade que a companhia dela te proporcionam. O afeto é desejar o melhor para o outro. Você talvez até acredite que seja o melhor para ela, mas deu a ela a oportunidade de conhecer outras possiblidades e escolher?
A verdade é que já decidimos, mas em respeito ao afeto que você diz que tem, quero teu apoio e compreensão.
Se você gosta dela como diz que gosta (e genuinamente, ainda que desse teu jeito torto, eu acredito que gosta), deixe a gente levar ela para outro lugar.
Nunca é tarde demais. Ela só conhece você, sua casa e o mundo é só como você pintou para ela nos últimos 40 anos.
Agora ela vai poder ter novas relações, novos vínculos e descobrir possibilidades que ela sequer imagina… você sabe como ela só chora aqui. É uma nova vida. Demorou muito, vai ser difícil no começo, mas ela tem esse direito. Tanto pela legislação quanto em respeito à dádiva que é o existir nessa Terra, ela tem esse direito, assim como você teve.
Ela tem o direito a um existir que seja dela e não mero anexo da tua vida.
O carro está pronto e já juntamos as poucas coisas dela.
Em respeito ao teu carinho, peço teu apoio.
Deixa a gaiola abrir, deixa ela voar!
P.S: Sei que foi dura a separação, sei que muito se chorou… mas eu quero te contar… tenho notícias dela…
Ela está sorrindo!

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